terça-feira, 5 de abril de 2011

minha vida com carlos


O clima de Minas ia melhorando aos poucos. Do calor quase insuportável de dezembro até o friozinho de gelar a coluna e não deixar a gente sair da cama, com um medo danado de se resfriar, em julho. Era assim no Brasil todo. Era assim na minha amada Itabira.

Eu nunca tive mãe, e desde que tive idade para trabalhar, eu nunca tive pai. Conheci cedo a maldade dos homens, tendo eu mesmo ainda pequeno cometido várias delas, mas não queria nem saber. Eu era itabirano, forte, e tinha que sobreviver, nem que encontrasse ainda muitas pedras no caminho, embora minhas retinas não estivessem lá tão fatigadas assim. Eu não amava ninguém, e o personagem principal da minha vida ainda não tinha entrado na história.

Tinha largado a escola pra ganhar o mundo bem moleque. Mundo esse que não passava de Belo Horizonte de carona em caminhão de transportar galinhas. Mas isso me ajudou a ver o mundo de outra forma. Sem educação a gente aprende as malícias do destino e acaba conhecendo mais as pessoas, tomando rumos. E assim foi.

Se os bondes tilintavam abafando o calor e o vento, esse me trouxe alguém pra amar, mas ainda que o próprio amor. Às vezes um botão, às vezes um rato, nesse caso um homem. Eu mendigava comida, cachaça ou pedaço de pão velho no auge dos meus dezessete anos e já tinha sido preso algumas vezes por crimes não violentos. Os que me conheciam da rua me chamavam de “ Luís Fracote” e tamanha era a tristeza em mim, que nem mais queria admitir vida. “ inútil você desistir ou mesmo suicidar-se “, disse o homem na primeira vez que seus olhos encontraram-se com os meus. Não pude acreditar como era inusitado e velho, o seu corpo chamando a atenção, curvado. Resolvi aceitá-lo como alguém confiável, sendo eu, mesmo assim, mais esquivo que um gato assustado. E ele me aceitou como alguém reparável, que podia ser consertado. E assim foi.

“ Não há muitos jantares no mundo”, pensei eu. Não no meu mundo, onde a delicadeza dava lugar à miséria e de nada adiantaria o velho senhor dar-me toda a comida que tivesse, pois no momento em que saísse dali, a fome voltaria. A fome era meu estado de espírito. “ Há uma cidade em ti que não sabemos”, disse ele após o jantar. Ele descobrira uma Itabira em mim que ainda não havia visto em nenhuma viela, porta aberta ou o que quer que fosse. Eu era a flor que nascera na rua, feia, mas ainda assim uma flor. E ele sabia dizer coisas que amoleciam meu coração de asfalto, e minhas pétalas outrora fechadas como a pureza da alma e todas as lembranças violentas que na verdade nada diziam, se abriram e foram alçar voo numa viagem patética para outro lugar que não perto de mim. Ele, o velho Carlos, dizia que me daria algo para a vida toda, para guardar. Nada cruel ou obscuro e sim alvo como um passeio na neve tão distante. O meu querido Carlos me daria conhecimento. Itabira era um deserto e agora parecia uma viagem em família. E assim foi.

Livros, cartas, geografia, coisas divinas que eu nem sabia o significado foram mostradas a mim como manda a cartilha e ainda mais. O poeta, funcionário público, geógrafo, professor, farmacêutico e dentista, me ensinou seus ofícios e finalmente eu era alguém. Vi com ele os períodos da idade da terra, a antiguidade, a maldade dos homens ( que eu achava que conhecia mas, que horror! ), a idade da crise e o verdadeiro poder das palavras. Sim, Carlos sabia usar as palavras para o amor maior, e dizia que o amor verdadeiro não tem tradução, e se escreve com letra maiúscula, pois está muito além de sua própria significação.

O mundo era tão inválido quanto minha vida fora um dia, um descarte, um câncer, uma felicidade invertida. “O mundo não vale o mundo, meu bem”, ele repetia e repetia, até mesmo quando a tosse vinha e eu voltava pras ruas, rezar por ele como um filho chama pelo pai. Diga a ele que é culpa de alguém e leva um cascudo daqueles!. Dia desses perguntei:

- Vô Carlos, mas desde que o mundo é mundo, é que tem maldade né?

- É sim, meu filho, o que tem isso?

- Isso é tudo culpa da falta de vergonha dos homens!

- E você o que sabe dos homens? O mundo não vale a pena, mas não cabe a nós julgar. Estamos todos juntos sob o mesmo teto de vidro, cuide de si mesmo, olha para seu umbigo, e contribua com idéias, é isso que faz desse mundo um pouco melhor.

- Sim, senhor, eu respondi, mas ainda era novinho pra entender aquilo tudo com clareza. Hoje sei que o vô Carlos tinha razão. O mundo não tem tanta maldade assim. Só pouca gente de cabeça cheia e um bando muito grande de cabeça vazia. O mundo é talvez, e só isso, quem tiver certeza debruça mas nada alcança.

Esse tipo de diálogo ia aumentando o nível a cada dia. Eu cresci e o vô Carlos virou seu Carlos. E só Carlos depois disso. Não queria entender que a tosse um dia o levaria embora, antes mesmo da velhice. Não aceitava que não poderia mais vê-lo amaldiçoando o bendito leiteiro da rua Namur, por nunca aparecer na hora do café, coisa que ele não fazia tempos antes, quando achava que o barulho nada resolve. Eu dizia que ele era um senhor que acorda, resmunga e volta a dormir. Ele sorria e respondia coisas como “Pois é possível? Pergunto aos jornais, todos calados!”, e eu não entendia. A mente de Carlos era muito aguçada para um ex menino de rua que agora era recém formado em Direito, pudesse entender .

E eram onze horas da noite.

Agora eu morava no calor do Rio de Janeiro, quis me distanciar muito dele. O medo dele, o medo da morte. O telefone toca em Vila Isabel e a próxima coisa que faço é pegar um avião de volta ao paraíso, que só era paraíso porque ele estava lá. O tempo de conhecer mais pessoas, aprender a viver com elas, ajudá-las, já havia passado. Era um corpo sem vida, com mais vida do que os que pairam por aí. Ele era iluminado.

Virou poema com oitenta e cinco, mudou minha vida inteira e seus últimos dias pareceram-se muito com os meus, seus últimos minutos se pareceram com os meus. Seus últimos suspiros eram os meus. O amor, o vento, Itabira, as moças, à morte, Maria Julieta, tudo se confundia no balançar das folhas. O silêncio era tão global e logo o mundo escureceu antes de nascer uma estrela. Eu não estava preparado.

Mas o que se passa afinal? Com todo o pranto que lancei por tantos anos, volta, enfim, a tristeza de outrora, o grande vazio como se sua influência de nada adiantasse em meu coração esburacado por sua ausência e ao mesmo tempo batendo forte com sua presença.

Agora, ainda mais velho, em meu leito de horror e dor, chamo por ele em delírio e choro. Choro tanto, meu Deus. Mas o que se passa? Agora em meus últimos momentos, posso com certeza afirmar. Tudo. O mundo, sim, vale a pena, mas só porque ele esteve lá. Sua essência em mim, protegendo contra a ignorância tão comum e ordinária, como se fôssemos um só. Então pare. A vida acabou. Ou talvez tenha sido somente ilusão.

E assim foi.

Um comentário:

  1. impressionante, cara, esse ficou muito bom!
    fazia tempo que não vinha aqui, mas gostei muito de tudo que li, parabéns!
    como sempre se reinventando e mostrando uma poesia que aflora cada vez mais profunda; seu sentimentalismo me comove :)

    abraço, amigo, saudades! visita o meu :*

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