terça-feira, 1 de setembro de 2015

raça

uma mulher muito branca passou por mim
foi ontem
eu já tinha visto essa tal em algum lugar,
sempre nas praças,
nas portas das vendas,
nas farmácias
às traças e as desgraças.
todos gostavam da moça,
davam-lhe de comer e beber,
papeavam sobre vinhos e sorrisos.
a mulher então passou por mim, sem dizer uma palavra.
eu lhe disse bom dia
nenhuma palavra.
eu lhe disse boa tarde
nenhuma palavra
quando deu-se o crepúsculo levava no colo minha criança
eu tinha um vestido bonito que queria estrear na cidade
e meu marido chegara cansado do ofício de dentista.
a mulher lá estava, em trapos
o rosto coberto de graxa ou qualquer coisa assim,
levava em si o peso do mundo,
eu disse: "boa noite, senhorita"
nenhuma palavra
o gato comeu sua língua, dona coisa?
não via na mulher nada além de desprezo nos dias que se seguiram
a mulher muito branca,
suja pela pobreza não me ouvia
eu gritava
berrava,
chamava atenção.
minha criança testemunha em meus braços.

quando a mulher branca morreu de qualquer coisa
só o que se via comentar era que infortúnio,
quantos de cor morrem todo dia?
quantos chinos?
mexicanos
mouros
ou mulatos?
que alarde?
viravam as cabeças quando me viam comentar que nada podia fazer
quantas vezes havia tentado ajudar?
o quieto era sua melhor arma dura.

uma mulher muito preta me apareceu na rua ontem
e anteontem
e ontem
e hoje
cada vez que vejo tenho mais estranheza
que raio de cor é essa que não se vê nem na jabuticaba mais doce?
é bonito
mas não é natural
é esquisito
e tem cria
tem marido
filha
casa
comida
quem seria ela
senão a dona do meu infortúnio
o silêncio é meu guia
mas agora que a febre me alcança
e os delírios de grandeza me somem
vejo coisas
penso tudo
aquilo que sou
que fui
aquilo tudo que vi
e senti
e a morte vem
é indolor
e incolor
a morte é arrependimento.

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